segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Hegel e a Conversão Europeia da História II




 
          Hegel e a conversão europeia da história
      
                            Eliane colchete
 
             este texto é continuação dos blogs com o mesmo título;









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Encetando, pois, a questão da Fenomenologia, que deve conduzir a essa aporia da exegesse que é o saber absoluto. Já vimos que Hyppolite apenas tangencia a indagação que colocamos, sobre quem fala na fenomenologia de Hegel, uma vez que ela apresenta o percurso da consciência, porém não introspectivamente. Hyppolite de fato não colocou expressamente a questão desse modo, pelo qual increve-se o limite da filosofia tradicional quando se trata do empreendimento hegeliano.

Pelo contrário, a indagação que Hyppollite põe como ao que deseja responder, é endereçada à estrutura da linguagem filosófica, e se ele se utiliza de Hegel na exposição de sua tese a propósoito da estrutura da linguagem filosófica, é por considerar que sua obra, especialmente a Ciência da Lógica e a Fenomenologia do Espírito, é "modelo de uma apresentação ou de um discurso filosófico".. (op. cit. p. 171)

Aqui o tema heideggeriano do fim da filosofia é mantido por Hyppolite, não contestado. A premissa de base é a mesma. As ciências "tomaram o lugar do pensamento metafísico", mesmo as Ciências Humanas devido à Linguística (p. 170). Premissa que, como já assinalei, não obstante o favor de muitos não conta com todas as minhas simpatias, nem quanto a ser atribuída ao que Hegel mesmo tinha em mente.

E quanto a ele, a premissa de Hyppolite não o salva do rol metafisico em que vimos Heidegger o listar. Pelo contrário, se alguém perguntasse por que Hegel especialmente seria oportuno, já que modelos de discurso filosófico podem ser considerados quaisquer dos grandes filósofos da história, Hyppolite o posiciona como "o" modelo adequado devido a ser "o último dos grandes metafísicos", considerando que Hegel estava perfeitamente consciente disso.

Mas a comparação de que se utiliza não é tranquilizadora. Estaríamos hoje para Hegel assim como a Idade Média tardia estava para Aristóteles. Além disso, a proximidade de Hegel, como sua influência profunda, é atribuída a Leibniz. Em Heidegger, esse é o nome mágico na operação que transpõe o Cogito cartesiano, já ele mesmo a operação metafísica da modernidade, do intelecto à apetição, o que Heidegger sinaliza pois como a estação principal na rota do verdadeiro fim, que seria a tradução radical do desejo na Vontade de Potência sem rosto de Nietzsche.

Ora, podemos nesse ponto, sem qualquer desvio de rota, levantar esse questionamento da crítica heideggeriana da metafísica assim como do fim da metafísica. A posteridade, não se sabe bem se é presente ou futuro, uma vez que o fim e a coisa redundam num mesmo. Além disso, aquilo que está depois da metafísica, sem confundir-se com o próprio fim dela, sendo designado o pensamento, este é não qualquer, mas cingido por sua tarefa prescrita. Ao que parece, porque sem ela não se poderia pensar qualquer pensamento como instância pós-metafísica, aqui o fim retornando porém não no mesmo sentido. Já não é o fim que faz mesmo com a coisa, ciência metafísica, mas o fim que é outro da coisa, pós-metafísica.

Ora, se essa crítica porta sobre algo que é conceituado como a coisa mesma, fim da mtafísica já não na ciência, mas em Nietzsche, haveria um círculo não hermenêutico nessa critica da metafísica, se ela se limitasse à justificativa de si por ter logrado inscrever o conceito nietzschiano na tradição do conceito filosófico, terceiro termo na trajetória de Descartes a Leibniz.

Certo, pode-se redarguir que o importante para Heidegger é que se devemos deplorar o fim da metafísica, não é por ter acabado, bem pelo contrário, mas porque se o fim dela é a ciência, está apenas (re)-começando. Tal como qualquer pre-sença assim como interpreta Heidegger a eksistência, aquilo que precede o próprio ser, enquanto uma possibilidade de vir a ser. Mas há presenças e presenças, e a metafísica é no todo indesejável por isso que é uma presença que impede que se compreenda o que as presenças são, a sua relativa precedência, não qualquer. Assim não haveria círculo numa crítica a alguém por pertencer a uma tradição, justificada apenas por "demonstrar"-se que aí se inscreve realmente, se há também a refutação da pretensão explícita dela como de fato o que ela veio a ser. A metafísica sempre totaliza os entes, quando pelo contrário diz estar universalizando o Ser.

Mas sendo desse modo, como a metafísica poderia findar, nela mesma, naquilo que se inscreve tão profunda e indelevelmente nela? Nietzsche seguiu um método e totalizou o possível. De que modo finalizou ele a metafísica? Pelo contrário, a crítica pertinente de Heidegger a Nietzsche, e uma tão penetrante que retirou para sempre Nietzsche dos limbos não filosóficos, isto é, não conceitualmente sistemáticos a que tantos se contentam relegá-lo, enunciou de sensacional apenas isso: que ao contrário de tudo que ele mesmo disse, jamais Nietzsche extrapolou a metafísica. Nem se poderia dizer que ele a terminou nesse sentido de que a solucionou. Pois, a crítica pós-metafísica de Heidegger, implica a insolubilidade da metafísica enquanto uma única, gigantesca, falácia.

É interessante que o "Nietzsche 2" de Heidegger, não fale de Hegel. Aqueles que pensam a questão do fim da filosofia em Hegel, o fazem por uma boa razão, que é o enunciado hegeliano de ter traçado o limite intransponível a todo idealismo antigo, como filosofia anterior à que ele inaugura como filosofia da consciência, "fenomenologia". Mas o que é então a instauração fenomenológica do saber absoluto ? Ele não é a tarefa de amanhã, mas o que se realizou hoje. Aqueles que pensam que é o desempenho histórico, presente e futuro, da ciência e da política, parecem-me equivocados nisso pelo que "ciência" não é "fenomenologia", em outros termos, "autoconsciência". Aquilo que se realizou é a autoconsciência, o Eu pensável.

Lacan radicalizou a psicanálise como um empreendimento de cisão do Eu e do Sujeito, preservando somente a este último como ao mesmo tempo o que pensa e o pensável. O que equivale ao descarte da consciência nessa mesma categoria, a denegação de qualquer sentido ulterior à consciência que não a pretensão "filosófica" de uma Eucracia, entre outras. Lacan nisso me parece apenas husserliano. O Eu que ele barra é o correlato empírico da experiência na qual os objetos estão fora. Mas radicalizando também a Husserl - o que é esperável, pois se há algo charmoso em Lacan é sua ausência de cumplicidade para com a ambivalência - para ele, o ele de 69, a consciência egológica se reduz totalmente aos seus objetos. Apenas o Sujeito é quem os possibilita objetivamente.

O Sujeito está, pois, nesse "Avesso" que seria a Verdade se houvesse, relacionado ao Real, aí onde indubitavelmente, seja o Real o que for, está a realidade, que é corpo. Mas que é corpo? Para Ponty, como estudamos antes (na página do outro blog) é a abertura de sentido do espaço. Para Lacan, é o que resulta na objetividade produzida do inconsciente enquanto resolução do Sujeito daquilo que é mais profundamente a sua especificidade na clivagem do gênero sexual (masculino ou feminino). Essa clivagem agencia o desejo, enuquanto a noção de agenciamento nesse mesmo sentido em que o desejo ao mesmo tempo sendo o determinante é o agenciado, logo, sentido que é criador do objeto do desejo, para Deleuze-Guattari não poderia estar predeterminada pela biologia.

Assim temos porém, dois sentidos do fim do idealismo "metafísico". Pela consciência à Hegel, pelo inconsciente à Lacan e os demais seguidores de Nietzsche.

Em todo caso, o que Heidegger, um passo atrás na trajetória da pós-metafísica que segundo ele mesmo começa em Nietzsche, relativamente a Lacan, critica em Nietzsche, enquanto mais uma falácia metafísica, parece-me ser legitimamente reportado como a totalização dos entes sendo feita porém, desta vez, como a totalização da subjetividade. Enunciado a princípio perfeitamente ambíguo, pois poderia sugerir apenas a repetição do que vimos acima: Nietzsche, o Descartes novo, pós-leibniziano. Mas o supreendente é que deve soar como o oposto. Como também já entrevisto acima. A Vontade de Potência é sem rosto. De que lado da pós-metafísica está Heidegger? Conforme o encaminhamento, claramente do lado da consciência e da subjetividade egológica.

Defaire le visage, este Cristo, palavra de ordem guattari-deleuziana do Mille Plateaux, esse outro Avesso da psicanálise, que se pretende inaugural porém a partir de uma outra análise, a "esquizo", nietzschiana. Será que Lacan chegou a tanto na sua radicalização da estrutura-gênero? Ele nunca se separou de Freud, o pensador do gênero, não obstante ter sinalizado os pontos de parada do percurso freudiano, enquanto problematização que tinha sua história, seu limite na episteme como época da ciência. Mas ambos, Lacan e Deleuze, se insurgem contra o que consideram a mesma origem, o mesmo Hegel.

Por um lado, o heideggeriano, o ego da consciência se defende, mas não para ser totalizado. Se ele se defende, é na qualidade de avesso da totalização. Se ele acusa, não é por o terem anulado, mas porque para isso ou seu contrário o procedimento é a totalização. Heidegger visto como um novo Hegel, que se descartou do verdadeiro por acusá-lo de totalizante. Contudo, esse descarte seria sintomático, e de que? Heidegger, um Nietzsche 2, que apenas desloca para a sua Als Struktur, a "estrutura como" - estrutura do significado em que sempre o dado é "como algo", predicado atribuível numa rede de implicações pre-estabelecido - aquilo que Nietzsche tratou como Vontade de Potência. Ambas, Als Struktur e Vontade de Potência, inumanas, autônomas, porém Heidegger querendo que ela produza o Homem, a significação, enquanto para Nietzsche um homem que se reduzisse totalmente à sua significação, sem fantasiar qualquer outra origem, já seria o super-homem.

Em ambos, Heidegger e Nietzsche, o sentido e/ou significação elide o que é a consciência hegeliana, relação com o outro. O sentido/significação pode então ser vertido na ordem pura do signo - "significante" lacaniano ou "regime variável" guattari-deleuziano. Nós não temos o um e o outro, na relação originária. Temos apenas a linguagem - na acepção da estrutura antes que da fala - esse Outro, que a ambos dispõe.

A questão de Hyppolite acerca da estrutura da linguagem filosófica se inscreve nesse ponto da pós-metafísica. Em Heidegger, a tarefa do pensamento no fim da filosofia é rememoração da filosofia como do Ser e seu esquecimento nela, esquecimento que é a metafísica. Para Heidegger existe pois uma positividade pré-metafísica do Ser pensável como a Aletheia pré-socrática, que não totaliza o universal, mas não creio que ele propôs a tarefa como apenas o retorno ao pré-socratismo, pois isso não daria por si só a crítica daquilo que todo pré-socratismo desconhece, como precisamente a metafísica na qual a ciência acabou de se enxertar. A tarefa pois, cabendo obviamente como crítica da ciência. O que resulta no erro, a meu ver, da totalização da ciência como metafísica, se o pensamento não é dito presente, mas tarefa futura.

Vimos no início deste estudo (que ficou no blog precedente) Heidegger mesmo posicionando o que seria o único contrário da Aletheia neste mundo pós-metafísico. Não o que ela critica, não se sabe bem como, se ela é o que é porque o desconhece. Mas o sujeito hegeliano enquanto totalização do Si metafísico.

Mas desse modo vemos que a crítica de Heidegger com base na Aletheia é ela mema uma premissa totalizante, da Als Struktur, apenas colocando na ordem do múltiplo o que a metafísica só peca por ter pretendido na ordem do uno, e por isso mesmo Heidegger não pensa que a metafísica fosse evitável. Ela não é o passado sem ter havido o originário de que esse passado é ao mesmo tempo que desvirtuamento, um caminho necessário nessa qualidade de inevitável. Assim como a mais valia ou mais de gozar em Lacan, aquilo que, se as andorinhas também tivessem, teria ocorrido há muito a andorinização do mundo. Lacan apenas repete o esquema geoegológico da modernidade que Hegel esquematizou pioneriamente porém com um espírito irredutível. O originário é maravilhoso mas não conduz à autoconsciência travestida de ciência do inconsciente. E o progresso que ela representa foi, como todo progresso, viabilizado pela vilania da história que deve conduzir a esse avesso. A evidência de que os impérios e o capitalismo não são a inventividade do homem, e, pelo contrário, são apropriações que refreiam o desenvolvimento da consciência, não passa pela cabeça dos porta-vozes do imperialismo travestido de ciência do progresso mas vestindo a capa do prosélito do originário.

Em Heidegger, pois, a Als Struktur não funciona como átomo atribuível. Se ela é aquilo pelo que nenhum de nós olha para seja lá o que for na base de um isso em geral que não me importa o que seja até que eu precise saber, mas sempre que algo está aí eu sei "o que" é, não se segue que cada coisa tenha sido uma vez construída como esse "o que" na minha mente. Mas sim que em nossa mente constituímos um mundo histórico de valores, uma consciência moral, uma rede de implicações, a nossa diferente da dos hotentotes, por exemplo. A aletheia pré-socrática sabia disso, a metafísica é um procedimento pelo qual a generalidade da Als Struktur se confunde com a especificidade de uma Als Struktur, a que depura toda história para supor que subsiste um objeto neutro, científico, absolutamente essencial.

Porém como se poderia acusar disso a Nietzsche? E como não se dar conta de que a ciência contemporânea, além do estereótipo, só testemunha a especificidade do seu contexto de linguagem? A dificuladade de decidir entre as leituras de Heidegger e Deleuze a propósito do super-homem de Nietzsche é patente por isso que se o primeiro supõe que ele é a epítome do homem nietzschiano, reduzido a esse universal dos apetites, enquanto o segundo pensa que é outro que o homem como único senhor do seu mundo, ambos podem se reduzir ao segundo. Já que Heidegger abstrai que os apetites em Nietzsche não são apenas o que a biologia poderia definir, ou mesmo o referencial do "sole ipsis" fora de um mundo histórico. Porém se essa abstração é imprópria, em que o superhomem não seria o homem hiperbólico?

Ou seja, aqui, em todo caso, há uma irredutibilidade total ao hegelianismo. Se a fenomenologia do Espírito é crítica das posições metafísicas anteriores, não crê num originário que elas teriam desvirtuado. Na origem está o problema de que elas são os casos, não tanto de solução, mas de sintomatologia. É nisso que podemos colocar a questão do saber absoluto como ainda fenomenológico-filosófica, mas não metafísica.

A dificuldade aí não é tanto o que resta por pensar da consciência, se já teria atravessado todas as posições do sintoma e aportado à solução como a verdade, a autoconsciência. Penso, bem inversamente, que se teria inaugurado um outro estilo, uma linguagem nova do filosofar na História, que se tornaria o texto de um Eu como um pensamento de mundo.

Mas sim que Hegel já lida com o múltiplo na História, as culturas históricas não são um mesmo, porém ele elide ao mesmo tempo, aparentemente, a heterogeneidade. Ao fazer delas estágios da Razão na história, como estações da desrazão dominante. Esse problema não cessa porém apenas pelo derrogamento do Estado constitucional do século XIX na qualidade de transparência efetiva da autoconsciência, uma vez que se o constata apenas cenário da luta de classes. O que se fez, bastante sintomaticamente, foi somente criar um objetivo novo como o dessa mesma realização, ainda que ele tivesse que ser justificado pela consciência da heterogeneidade.

Contudo, podemos contornar a dificuldade pela reinserção do horizonte político da Fenomenologia do Espírito de Hegel, que assim obteria esclarecimento na sua Filosofia da História. Ambas se expressam em termos de Estados como efetividades étnicas. Mas na verdade tratam de regimes políticos. Essa junção é bem atual, praticada explicitamente pelos regimes de signos deleuzianos, assim como já pressuposta de algum modo pelo freudismo.

Se Deleuze elide a consciência, ele coloca no lugar da subjetivação o que designa "povo", no Anti-Édipo, que porém não é a efetividade nacional do sujeito, mas o que seria a essência de algum povo da história com que o sujeito se identifica não por metáfora, mas porque seu inconsciente realmente atualiza o regime de signo correspondente àquele povo. O que vai ser explicado melhor em Mille Plateaux. A propalada ausência da noção de desenvolvimento na história, para regimes independentes, é na verdade apenas camuflagem para o etnocentrismo que reduz os "povos" a fórmulas perfeitamente estranhas à sua heterogeneidade e historicidade, mas de fato o desenvolvimento é identificado no texto guattari-deleuziano.

A inversão aparentemente praticada relativamente ao positivismo de onde porém o esquema deleuziano é expressamente emprestado como de Morgan, inversão pela qual o primitivo seria bom, logo se atenua quando se trata de afirmar que o primitivo não tem rosto, só "cabeça", e então quando se expressa que seria impossível ao civilizado, que o tem, reproduzir aquele estado idílico, utiliza-se o termo "regressão" . A palavra de ordem de desfazer-se o rosto não é pois uma política praticável pela própria instância que a compreende.

Além disso, o originário guattari-deleuziano não é o primitivo, mas o esquizofrênico - realmente, aqui, algo que leitores atentos de Lacan poderiam considerar que se deve a ele mesmo, não obstante não o ter amplamente explicitado, exceto na sua "Resposta a estudantes de filosofia", em que assume o esquizofrênico em termos "da ironia que o arma, atingindo a raiz de toda relação social".

Assim como a homologia de doença mental, fase do inconsciente e posição de "povos" ante-moderna-ocidental vem da psicanálise. E para Deleuze-Gauttari o regime histórico que tende à esquizofrenia é o capitalismo. Sendo óbvio que não se pode postular o capitalismo na aurora dos tempos.

o regime que realiza a esquizofreinia de um modo são, se o capitalismo tende a ela mas a reprime artificialmente - enquanto bárbaros e primitivos a reprimem intrinsecamente - é o que designam a-significante, que apenas se contenta em reproduzir qualquer que seja, como julgam Deleuze e Guattari que faz a ciência, a arte e a filosofia. O "esquizo" é pois aquele que ao mesmo tempo produz tudo, como o meio do inconsciente permanecer originário; e não produz nada, posto que ser originário é poder reproduzir quaisquer regimes de signo, e esse poder se realiza pois como personificar variações deles. Eis porque os deleuzianos costumam se designar vampiros, e conforme a tradição, até uma vez um deles bejou-me - o nosso querido professor Ulpiano, ternamente, no rosto, quando eu frequentava o seu cursinho no Humaitá, sem pagar um centavo.

Em Hegel, o Sujeito, enquanto não diferenciado do critério do Eu, a autoconsciência que significa a consciência da existência do eu alheio, assim como da coexistência dotada de sentido, é o horizonte comum da Fenomenologia da consciência e da História do Estado. Resta portanto, aquilo que permitiu ao Eu vir a ser pensável. Podemos a princípio atribuir como sendo a Lógica hegeliana. A dialética, a possibilidade aqui sendo a de um pensamento do devir - o contrário de toda postulação metafísica do Ser. Porém que o pensamento seja em devir, portanto possivelmente do devir, eis a assunção da Fenomenologia da consciência.

Se Hyppolite não destoa de Heidegger quanto ao situamento duvidoso de Hegel como último metafísico, ele começa por colocar essa relação de Lógica e Fenomenologia em questão. Mas para desse modo, inserindo-a na estrutura do discurso filosófico, que, como vimos antes, ele situou conforme Hegel, entre a implicação de uma norma de verdade e a instauração de sua própria crítica, reestabelecer o horizonte da tarefa do pensamento. Esta seria um tipo de rememoração que projetaria uma sombra sobre o que é rememorado. O que assim se aproxima explicitamente de Ponty, faz porém apelo a algo que é a estrutura da linguagem filosófica, um estilo.

Após Heidegger, Ponty poderia de fato ser considerado um retorno da filosofia, mas transformada pelo projeto fenomenológico. Se já estudamos a crítica de Ponty a Hegel, vimos como a fenomenologia nele é a que procede de Husserl mas se prolonga em Marx. Nessa transformação contudo, o movimento heideggeriano contra a metafísica tradicional foi apenas melhor assumido como horizonte da ontologia que não seria a tradicional. Ao jogar a filosofia assim revalorizada na caracterização de uma linguagem, Hyppolite apenas se diferencia de Heidegger quando se trata da tarefa do pensamento pós-tradicional - como desde agora devemos ler o famoso rótulo de "pós-metafísico". Para Hyppolite tratando-se de reconstituir a forma da linguagem filosófica. Mas logo entendemos que ele não está tentando reconstituir o que teriam sido as articulações internas de um fóssil. Ele está pensando em algo bem irredutível, e por isso escolheu Hegel.

Para Hyppolite, ao menos num primeiro nível do seu texto, a nossa indagação sobre quem fala na Fenomenologia do Espírito deve ter como resposta a consciência comum, e é ela o problema que Hegel instaurou como atual da filosofia. "... o filósofo não deve se colocar no lugar da consciência comum, diz Hegel, mas sim segui-la em suas experiências teóricas e práticas, reunindo estas experiências no 'elemento do conhecimento'...". (p. 178) Porém segue-se logo um escalonamento de níveis. Até aí, postas assim as coisas, a estrutura da linguagem que se requer como filosófica seria a de um texto que se desenvolve em torno desse seguir. O fim da metafísica de que Hegel seria o último representante, se torna esquecida, para um Hegel que ao contrário, inaugura uma filosofia nova. A sequência porém, conforme Hyppolite, é a implicação entre a consciência comum e o conhecimento absoluto ao qual ela deve aportar ao cabo da inquirição fenomenológica. O problema se eleva ao que podemos colocar como um segundo nível da nossa leitura. Trata-se agora de defini-lo, enquanto aquele "que ainda hoje se constitui num problema bem real" enquanto o "caminho extraordinariamente original" que "Hegel abriu", como problema das relações de ciência e consciência (comum), assumindo-se a primeira como produto da segunda em seu próprio desenvolvimento.

Mas uma terceira camada vai logo aparecer, como a tarefa desenvolvida a partir de Hegel, uma vez que se confronta o fato dele não ter resolvido a contento o problema. Ora, o desenvolvimento do problema é de obscura enunciação, uma vez que se o precede por um torneio tal que Hegel pavimenta de fato todo o caminho possível da posteridade possível. Mas dessa duplicidade, o que vai se seguir é a retroação à pergunta sobre o "quem".

Hyppolite atribui, a princípio, aquele ponto em que a consciência comum se reconhecerá na Fenomenologia: "o ponto em que naquilo que Hegel chama conhecimento absoluto, a consciência comum dirá finalmente: 'mas o que você acaba de descobrir eu sempre soube'". Isso não traz lá muito bons augúrios, posto que Hyppolite compara a consciência comum neste ponto advinda, ao Édipo, no fim de uma busca de tão trágicos resultados. Então o enunciado resume numa curta proposição todo o futuro da filosofia após Hegel: "Somente quando a consciência comum se reconhecer na consciência filosófica, e esta naquela, é que se chegará à psicanálise, é que a ciência estará viva e a consciência comum será científica".

Porém logo esse augúrio mais feliz quanto a nós outros, postados como estamos nessa posteridade, se realiza pelo deslocamento da origem. Se Hegel não resolveu o problema, é porque não fez o que Hyppolite atribui às obras tardias de Husserl "quando examinou as relações entre as ciências técnicas e suas origens comuns". O enunciado é complicado, pois vimos que Hyppolite atribuiu a temática mesma dessas relações como a originalidade de Hegel. Aqui ele diz que Hegel não podia ter feito o exame atribuído a Husserl devido ao limite epistêmico da época, não obstante, continua afirmando "o problema, que Hegel colocou, das relações entre o conhecimento científico e o conhecimento comum e entre a linguagem científica e a linguagem comum." Ao que parece, Hegel introduz mas Husserl desenvolve. E se antes a psicanálise é que realiza o conhecimento absoluto, a justificativa de Hyppolite dessa asserção não abrange a relação de ciência e consciência, mas incursiona pelo conteúdo da Fenomenologia do Espírito, onde "o admirável na história da consciência ordinária e de sua linguagem é que desde o começo ela é sempre um diálogo humano", assim o "elemento comunicante" transita nesse elemento dialógico, como "o 'eu' e outro 'eu' em confronto permanente". Assim "o conhecimento passa através da comunicação e, antes de tudo, como os senhores sabem, através da desigualdade das consciências que se encontram (Esta desigualdade senhor-escravo é um problema por demais conhecido)."

Ora, tão logo a complicação fica para trás na continuidade da exposição, o que decorre como retorno da pergunta sobre o 'quem' assoma como o desvendamento da resposta a partir, novamente, do próprio Hegel, como aquele, novamente original, que permite posicionar uma "obra filosófica" como "uma apresentação da consciência comum". (p. 179) A partir daqui qualquer resposta incide, necessariamente, tanto sobre a filosofia como sobre a consciência comum. Porém não é bem isso que Hyppolite responde. Mas sim, bem inversamente, que o discurso filosófico é aquele que instaura um paradoxo. Sendo "aquele que não faz distinção entre o ser do conhecimento e o ser do objeto". Se Hegel é quem o explicita, pondo nessa explicitação todo o esforço da redação do "Prefácio" à Fenomenologia..., por um lado está rejeitando tanto o pensamento representativo, onde o objeto está fora, como o pensamento formal, que o reduz a um esquema. Por outro lado, está afirmando que "o verdadeiro pensamento filosófico é o pensamento no qual o conhecimento não é exterior à coisa conhecida".

Podemos entender isso, se o que se torna conhecido na Fenomenologia é a consciência, de modo algum possivelmente estranha ao empreendimento fenomenológico em si mesmo, e, bem inversamente, sendo o seu próprio meio. Mas como a resposta se aplica ao que, assim, seria não o discurso filosófico, mas a consciência comum? Com efeito, a resposta de Hyppollite soa ambígua. Ora o que ela expressa é o paradoxo, formalmente especificado: "No discurso de um filósofo não sabemos quem está falando, nem sobre o que se está falando", uma vez que nele não há distinção de sujeito e objeto; ora essa indistinção não é o que a representação ou o formalismo enquanto discursos filosóficos possíveis iriam exemplificar. Se Hegel a exemplifica, por ter aberto um novo caminho, é por que a resposta ele a permite fornecer nos termos da consciência comum.

Primeiro, porque é ela que se reconhece na Fenomenologia, como vimos. Mas também, logo Hyppolite atenua o paradoxo ao afirmar "o que Hegel nos está propondo: que o filósofo crie um discurso que seja o discurso e o ritmo das próprias coisas" . (p. 180) Essa proposta seria, conforme Hyppolite, a única que atenderia ao requisito de um "estilo de narrativa em que aquele que conhece se integra na coisa conhecida", enquanto o estilo em que "aquele que fala e conhece e a cois aconhecida formam um único movimento".

A alusão narrativa aí não é fortuita, pois Hyppolite, considerando a Fenomenologia do Espírito "um grande romance da cultura", defendeu a tese de que ela era o "Wilhelm Meister" goetheano, como vimos também Bréhier considerar, porém Hyppolite depois supondo ter descoberto que era "também La Vie de Marianne". (p. 177) Em todo caso, a relação de discurso filosófico e linguagem como o fio vermelho da história como da consciência, em Hyppolite, é apresentada como introduzida por Hegel ele mesmo. Não só porque "hegel conhecia todos os romances do século XVIII e ele próprio escreveu um romance filosófico", essa "comédia terrestre" que é a Fenomenologia do Espírito. Mas porque, se é permitido não apenas adiar como de fato suspender a discussão sobre se aí se trata de romance ou filosofia, o problema pioneiramente enunciado por Hegel: "Com efeito, a Fenomenologia representa a ciência da experiência comum e da linguagem comum".

Hyppolite insiste assim que Hegel é quem inseriu definitivamente a realidade da mente na linguagem, assim como a do "eu" e do "tu", possíveis apenas enquanto pronomes pessoais, requisitados embreadores (shifters) do discurso, assim como toda dêixis à exemplo do "este", do "aqui" e do "agora", "que representam o universal dentro do campo da vida individual". Um "Barthes avant la lettre", Hegel, não se contentando em ter apenas estabelecido o embreante a priori dos nossos diálogo e conhecimento, também ousou posicionar a linguagem em termos do "estilo ou a expressão fundamental de uma cultura ou a retórica de uma cultura." Especialmente a linguagem arte. (p. 175)

Mas a originalidade de Hegel assim colocada seria bem pouca, se podemos lembrar que essa inserção retórica da cultura é o que permitiu fazer da história ciência social, dotando de sentido o seu objeto até aí relegado ao fortuito passional da carne como perfeito oposto do espírito. E quem realizou esse transporte absoluto da modernidade, e já desde Herder e Jean Paul, foi o Romantismo, que Hegel de modo algum inventou por si só. Porém assim estaria havendo na leitura de Hegel como um predecessor de Barthes, a meu ver uma confusão capital de causa e efeito. O "eu" é em devir na língua, que assim em si mesma é devir dos "eus", mas não o contrário. Este é o que não seria possível colocar-se antes do positivismo. Se o positivismo reduziu a culturaà ideologia como super-estrutura, e Marx é bem explícito na "Ideologia Alemã' sobre que cultura é tudo que se considera o produto do "eu", foi porque o positivismo criou a estrutura, puramente material, dessubjetivada. O pós-positivismo descobriu essa estrutura na própria ideologia, podendo fazê-lo por essa nova materialidade que é o signo. Mas o Romantismo está antes do materialismo.

Um segundo motivo pelo qual podemos afirmar que Hyppolite responde também, sobre quem fala na Fenomenologia de Hegel, que é a consciência comum, vimos pela alusão às próprias coisas como falando aí, "o discurso e o ritmo" delas mesmas. O que Hyppolite considera a dialética. Ora, se não só de Fenomenologia viveu Hegel, quanto à sua Lógica, para Hyppollite nela o que ele pretendeu foi "devolver ao escrito a naturalidade da fala viva. Escrever implica num acúmulo de determinações e articulações em que o pensamento se fixou para expressar-se em palavras escritas." (p. 180)

Na verdade esse ponto é o pivô do interesse hyppolitiano em Hegel, mas também o seu limite. O que move todo o interesse da indagação, assim como pela filosofia mesma, é isso. Que as ciências, sendo o desenvolvimento de "linguagens técnicas", teriam terminado não só com a filosofia, mas com "muita de nossa esperança na humanidade", caso não fosse possível um "caminho entre a consciência tecnicamente organizada e a consciência comum", percorrível. (p. 178) O crucial da filosofia é - ou veio a ser - pois, que "a consciência comum devem então descobrir em si mesma o despertar da ciência, assim vencerá sua profunda falta de consciência, pois ela não se entende, não sabe o que faz ou diz." Aqui Hyppolite contemporiza. Hegel não diz que é a consciência comum quem fala na Fenomenologia como pela boca do filósofo, mas sim que, por meio delas, ele a segue. Porém o que ele segue é a autodescoberta da consciência comum. O que está sendo falado, assim como o movimento em que se constituem os objetos e que é o ser mesmo deles.

Além disso, contudo, Hyppolite não crê que a consciência comum, ela, esteja "sempre sabendo o que está dizendo ou quem está falando através de si". A contingência dela não saber não é a Fenomenologia que exemplifica: "Às vezes outra consciência a compreeende [à consciência comum] melhor do que ela própria, como demonstra o diálogo psiquiátrico". O que não elide a unidade em que se instaura a junção de ciência e consciencia, como a essência da humanidade: "Entretanto, é na linguagem e no seu exercício que a mente existe. Se há uma pluralidade de línguas, assim como há uma intersubjetividade, esta plualidade está dialeticamente contida na universalidade da linguagem humana. A linguagem, então, é não só o elemento fundamental do pensamento, mas a condição necessária para o diálogo e o conhecimento". (p. 175)

Ora, aí também, o limite. Hyppolite especifica onde ele não é hegeliano. A tarefa fenomenológica de se vir a achar a junção de ciência e consciência, "precisamos ser capazes de fazê-lo", mas assim como "sempre um projeto, nunca uma totalidade perfeita". Atribui-se pois a Hegel essa perfeição indesejada. Não sendo porém dito nada além da interlocução como aquilo em que se resolve a definição fenomenológica do que a consciência comum e sua linguagem é "desde o começo". (p. 178) A pista prossegue apenas num outro ponto, aquele em que Hyppolite define o metafísico em Hegel. Trata-se da definição da "consciência universal do próprio eu, do Ser" como "ambiente linguístico", isto é, "o Logos". (p. 174)

Porém não se compreenderia esse ponto como uma verdadeira crítica. É ele que introduz a consideração do que a linguística de hoje designa os shifters e os dêiticos, como aquilo mesmo que Hegel teria desenvolvido: "Toda a Fenomenologia desenvolve esta tese sobre a linguagem e a repete em níveis difrerentes", afirmando assim os embreantes a priori e a retórica da cultura.

Podemos retornar à oposição de Husserl a Hegel, desfazendo algo da complexidade. Com efeito, Hegel não analisa qualquer linguagem científica determinada, em sua relação com a consciência, quando se trata do conhecimento absoluto já atingido. Porém se ele não o faz, ao contrário de Hyppolite podemos considerar que não houve aí um limite de época, mas sim que se trata de uma questão de exegese. Teria de algum modo Hegel antecipado Bachelard? Pois bem depois de Husserl, o "novo" ou "ultra" racionalismo bachelardiano implica a impossibilidade radical da junção pretendida por Hyppolite. O desenvolvimeno da ciência é autônomo ao seu jogo, a consciência comum de forma nenhum o prepara ou antevê.

A questão aqui é que isso não resulta num escândalo necessariamente, referente a tudo o que se possa dizer da fenomenologia, justamente se Hegel não pratica a perquirição do nexo de ciência e consciência a partir da análise da linguagem técnica. Pois evidentemente o ultraracionalismo não implica que a ciência ultrapassa a consciência, como se ninguém fora do laboratório pudesse entender quando lhe informam que há agora, produzidos pela ciência, elementos químicos que não preexistiam na natureza. Mas sim que quimeras da consciência como o noumeno kantiano não são desfeitas por nenhum desenvolvimento interno a ela mesma enquanto comum. Eis a produção do ultraracionalismo, via laboratório. O elemento químico artificial, fenômeno inteirmente sem noumeno.

Mas é o que se pode duvidar, também, quanto a Hegel, não só que ele apenas atinge o momento culminante como aquele em que aquilo de que se fez consciência foi a possibilidade real da ciência, independente de si, e, mesmo assim, efetiva a partir dessa independência como nível da consciência. Podemos pois indagar ainda, se Hegel está seguindo a consciência ordinária na fenomenologia, ou está, inversamente, seguindo a necessidade da formalização conceitual, que ultrapassa a consciência comum a cada vez que se trata de uma subida de nível dela mesma relativamente ao que era até aí. O problema na interpretação de Hyppolite seria assim que ele nunca nos fala do devir como o que Hegel tornou imanente à consciência.

Ele se limita ao que considera a oscilação de Hegel entre a Lógica e a Fenomenologia, como entre o quem e o como do discurso, oscilação que a seu ver situa o interesse da tarefa filosófica presente. Mas assim todo o desenvolvimento do prefácio como a tese da estrutura do discurso filosófico em termos de paradoxo do "quem" e do "que", ficou baldado. Pois de fato esse paradoxo não responde à pergunta sobre o "quem", se o entrelaçamento ao que deriva de um a priori do como, e a tarefa permanece em aberto. De fato, como poderia a consciência comum apreender seu a priori embreante? De que modo se diferencia o a priori da coisa mesma, neste caso, se não há consciência comum fora da dialética de eu e você?

 
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A defasagem do pensamento pós-metafísico, de Marx em diante, como a priori estrutural independente de ser considerado pelo viés funcional do todo ou pelo estruturalismo das partes, pela consciência ou pelo inconsciente, quando se trata de pensar o devir, atinge pois o estatuto do universal. Assim o da linguagem, lembrando tudo o que pode haver de imiscível num horizonte linguístico coerente com uma hermenêutica à Schleiermacher ou à Heidegger. Num caso, a miscigenação, e esse inapreensível além do divinatório, que é o discurso do autor individual. No outro, a diferença ontológica como rede totalizante do sentido que enquanto "ser aí", Dasein, sempre sabe, mesmo que a totalização seja projeto possível, em vez do conhecimento como dado.

Na recepção do hegelianismo hoje em dia, esse novo problema do universal tornou-se momentoso, repercutindo porém na filosofia política como interpretação da "Filosofia do direito", em que Hegel afirma que o Estado é a "realidade efetiva da liberdade concreta".

O neoliberalismo econômico tem sido um pretexto da utilização de Hegel por causa da concepção que se espera nele haurir, do que seria um Estado não totalitário. Até aí só poderíamos congratular a intenção interpretativa. Porém o que se entende por não totalitário, pode não ser bem aquilo que nós mesmos consideraríamos assim.

Em geral, um limite da modernidade enquanto ambientação pós-metafísica, tem sido desde Marx a crítica do Estado como apenas a estabilização da diferença de classe. Não adiantaria fazer ver que ela não se inscreve na letra da constituição democrática, mesmo que Marx pessoalmente militasse pela democracia como propedêutica da organização proletária. A questão em si tornou-se o que implica a forma Estado, e se tem havido muitas respostas, até a pós-modernidade todas foram condenatórias dela, enquanto implicando o universal, determinante independente da fluidez da cultura, e justamente ali onde não poderia haver ciência, ou, pelo contrário, flutuante acima da materialidade da estrutura, ali onde só poderia se tratar da ciência da História.

Ora, o que não poderíamos esquecer quando se trata de Hegel e do que ele pensou em termos de Estado na caracterização do devir de ciência e consciência, é essa obviedade, que ele não inventou o seu objeto. Ele não inventou o senhor e o escravo, mas os posicionou no horizonte observável como o da história por conceituar. A indagação de Lacan a propósito soa estafúrdia. Não é o caso de se perguntar por que o senhor devia surgir do embate das consciências, uma vez que este é o resultado concreto da história toda, o haver da dominação do senhorio assim como da escravidão. Ele não inventou também os Estados que inventariou até o Estado constitucional da modernidade.

Porém quando se utiliza Hegel, como o que se quer criticar ou defender, este particular é singularmente abstraído. Do dilema gerado pela tese do Estado mínimo do neoliberalismo econômico, conforme seu oposto no Estado totalitário, mesmo uma solução que voltasse ao liberalismo hegeliano poderia não escapar. Os termos estando desse modo pre-estabelecidos, seria preciso muita cautela para evitar cair num extremo ou no outro. O pior, a meu ver, seria que o neioliberalismo estivesse sendo defendido



como se fosse o locus atual do liberalismo em geral. Pois o totalitarismo é um monólito fácil de atingir, mas o fascismo difuso destilado pela dominação de classe, não.

Vemos um exemplo de uma infeliz possibilidade assim, quando Hegel é útil apenas como o pensador de um "Ideal de Estado" enquanto realização do "Estado pensado, o Estado que deveria ser", que porém "não encontramos realizado" mas sim apenas "uma espécie de ideia reguladora dos Estados históricos". O referencial da idealidade porém, sendo o universal hegeliano, enquanto essa novidade conceitual que proveria a reunião de ética e política depois de tanto tempo vigorando a sua maquiavélica oposição, na sua definição da função ou ideal de um "Estado ético-político, ou seja, do político que se fundamenta em bases éticas." É do modo que se expressa Thadeu Weber, apoiando-se em Noberto Bobbio (O Estado ético, in "Estado e política; a filosofia política de Hegel", Dotti, J. et alii, Rio de janeiro, Zahar, 2003, p. 104). (p. 106).

Procederei a apreciação crítica desse exemplo tencionando separar o menos possível as duas noções de Estado e Universalidade, uma vez que atribuo o problema da interpretação do Estado hegeliano nele ao modo como foi entretecido pela posição abstrata do Universal. Contudo, o texto hegeliano mesmo aprofunda a autonomia de cada uma delas.

Defende pois Th. Weber, que no texto hegeliano "a ideia do Estado existe apesar das deficiências históricas. Hegel, portanto, parte da ideia do Estado (do Estado pensado) para emitir algum juízo sobre os Estados históricos". Para um contraste dessa posição com o texto hegeliano, vemos a autonomia da teoria do Estado. Pois Hegel não poderia considerar o Estado um ideal que existe independente da história, se para ele a história existe somente enquanto existência do Estado. Há assim uma pré-história, que não é isenta de sociedade, mas sim da organização desta em nível de Estado.

Só se poderia pois entender o Estado estudando a história em que ele se efetiva, e é por isso que Hegel não estabelece uma ideia do Estado, mas sim um devir em que se sucedem vários Estados até aquele em que algo mais vem a ser expresso, além da dicotomia de sociedade e Estado. A saber, a liberdade dos sujeitos como algo até então nunca pensado, não antecipado, como a função mesma do Estado.

Que esse ponto é essencial, vemos por isso que o engano de Th.Weber é reforçado pela sua convicção de que o Estado ético em hegel precede aquele que é tratado como apenas político. O Estado político é a estrutura do "Estado constitucional hegeliano", a monarquia constitucional da época, que assim de fato se pode afirmar ser um referencial histórico da modernidade, com outros tipos de Estado anteriormente documentados. (p. 108)

Mas a base ética de qualquer constituição é referenciada pelo texto como as sociedade enquanto referenciais de costumes e tradições. Assim não podemos conceber sociedade sem Estado como referência ideal do "ético-político, ou seja, do político que se fundamenta em bases éticas". (p.106)

Repetindo, o Estado político é a estrutura do "Estado constitucional hegeliano", mas a "base ética sobre a qual se sustenta a Constituição" está confundida com a sociedade civil enquanto "formação política". Mais exatamente, na colocação de Th. Weber, "A Constituição de um Estado, portanto, é o próprio Espírito do povo". Nem mesmo haveria para ela o prerequisito de ser escrita, como também "já está sempre feita", refletindo nas suas mudanças contínuas aquelas em que consiste o tempo vivido de um povo. (p. 107)

Mas se o Estado é o ideal e não o efetivo, sendo o ideal o propriamente ético, o que seria esse propriamente éticonão se limita à pluralidade dos povos, e, pelo contrário, vem a ser a "determinação de princípios éticos universalíssimos" acima da pluralidade, enquanto "princípios éticos universalmente aceitos". Esses princípios podem, devido à sua universalidade, conforme Th. Weber em consonância com Bobbio, servir como "tribunal da história a ser tomado como ideia reguladora do Estado político", de modo que possa vir a ter este "base ética" tal que permita julgar entre as constituições particulares dos povos qual é ou não é ética.

O exemplo é a posição da mulher no "regime Talibã", que "embora seja próprio do espírito de um povo ou revele exatamente o que é o espírito desse povo (seus costumes e tradições) certamente está fora do espírito do nosso tempo, bem como do 'espírito do mundo' de hoje". Assim também os ataques terroristas "contrariam o espírito do nosso tempo e mais ainda o 'Espírito do mundo'". O que é perfeitamente absurdo, do contrário Hegel seria aquele pensador bisonho de um a priori de Estado de todo fora da história, como o avesso do que nela está ocorrendo de mais grave e fundamental ao tempo. Aliás, a própria História efetiva seria o contrário do espírito do tempo.

Já vimos que Hegel considera o Estado contemporâneo a realização da liberdade dos cidadãos enquanto sujeitos, como aquilo que até então se desconhecia na história. O importante aí a meu ver, é sua relação por tematizar, com o que está ocorrendo na época, a transição do direito estamental para aquele que, pautando-se pela igualdade da lei do país, teria por referencial os sujeitos que constituem a população. O contrário, o antigo regima, era a lei diferenciada para cada estamento, o que propriamente se designava "estado" - assim na França, a revolução foi feita pelo "terceiro estado", composto pelos plebeus, o segundo sendo o clero e o primeiro a nobreza.

Vemos portanto que a expressão usada por Th. Weber, "Estado estamental", não só como o que Hegel teria preconizado como ideal, como ainda a saída para o suposto como tal dilema de Estado mínimo neoliberal e totalitarismo, é absurdo. Pois um estamento é um estado como lei instituída própria, e não poderia haver um Estado de vários estamentos, o que seria um Estado de vários Estados, uma constituição de váras constituições. E de fato, a oposição que se tem feito à legalidade, por oligarquias ou anarquismo, se expressando pela autonomia suposta natural de grupos, se expressa contra o Estado constitucional por algo que supõe estar acima dele em termos de moralidade. Mas uma moralidade que não tivesse por limite os direitos humanos, não é que não exista, mas sim que se tornou inaceitável num certo momento histórico, aquele em que a emancipação dos escravos atingiu o nível da moralidade constitucional.

A oposição que se tem feito ao Estado, por parte de aristocracias ou anaquismos como de Foucault, insurge-se não contra a letra da lei, mas pelo que a forma enquanto esse sentimento moral. Sugere-o um falso humanismo. Esquece Foucault e outros que essa moralidade não se confunde com o dever- ser sádico, mas é a dos direitos humanos. Sua tentativa sempre foi reduzi-la a uma expressão do dever-ser sádico, porém a tradução do conflito social no embate de lei e distorção, moralidade e corrupção, legitimidade e poder, não prova que não existam os primeiros, só os últimos. O próprio modo de isolar a crítica na formação do ethos legal tem isso de peculiar. Anula esse confronto, pois não faria sentido lutar contra a corrupção, se não houvesse qualquer horizonte da legalidade como princípio orientador da luta. Mas se não há, por que se deveria ser foucautiano, ou seja o que for? Trata-se apenas da guerra de todos contra todos, tornada para sempre insolúvel. Não se vê porém porque essa glorificação da força bruta não resultaria na identificação mais chapada do "um" mais forte. Não é tanto o que o pós-estruturalismo rejeita, como que a imposição seja de fora para dentro, mas não vemos porque a rejeição pós-estrutural do "um" não venha também de dentro, etc.

A "legalidade", assim como a pensamos num Estado constitucional, com efeito, é o contrário do direito estamental, pois implica que todos tem os mesmos direitos e deveres. É um princípio da legalidade, internacionalmente reconhecido, que ninguém pode ser julgado por uma lei diferente da que reconhece como pertença ao seu Estado. O liame nesse caso atende aos próprios interesses da pessoa, sendo de natureza unicamente legal.

O reconhecimento, a noção hegeliana aí implícita, é pois a inteligibilidade de um mundo de relações, cujos integrantes não tem meios de saber a verdade sobre os interlocutores de antemão. O reconhecimento não desfaz esse raulsiano "veu da ignorância", se o liame, a pertença dos sujeito a um Estado enquanto cidadãos, não diz respeito aos seus corações e mentes. Muito menos implica que todos entretem relações mútuas de parentesco ou compadrismo. Menos ainda - obviamente - que haja um Urstaadt sistêmico igual a si para o que importa desde os tempos dos imperadores bárbaros até agora, na forma virtualmente "legitimada" de algum império mundial. Não, obviamente, já que pelo contrário, trata-se da legitimidade como heterogeneidade das leis, dos Estados nacionais como de suas constituições, mas estas só cobrem e só devem cobrir o que importa à ação em nível público.

Pode-se pois, regular até que ponto todas as crianças de um país estão sujeitas a castigos dos pais, e só podemos julgar os pais pela regulação do seu país como a única que conhecrem e tem obrigação de conhecer, mas não tem sentido regular a intensidade, o modo de ser e de se expressar, do amor dos pais pelos filhos, aqui ou em qualquer lugar. Simplesmente não tem sentido regular sentimentos privados, aquilo que já é como é por si só e não não havendo assim possibilidade alguma de mudança, dolo ou desvio quanto ao que é, e se sentimos que não tem, é porque prezamos nossos direitos e somos capazes de prezar que estejam sendo respeitados os alheios. A questão da legitimidade como Ideia é posta em Hegel por isso. Não é de hoje que sentimos assim, mas se houve escravismo ou senhorio, nem todos sentiam assim, porém num certo momento da história, ocorre um consenso que legitimiza em nível de Estado, nacional e internacionalmene, a esse sentimento, ao contrário da dominação escravista senhorial de outrora. A questão hegeliana não anula a História, não pretende se colocar acima dela. Pelo contrário, só é ponível por ter havido uma história, por terem se constatado mudanças. Do contrário, Hegel teria se captura no seu próprio diagnóstico, naquelas figuras da consciência que projetam ideais de certo ou errado puramente idiossincráticos, ou mesmo, se são ideais justos, não tem contudo ressonância numa prática de contestação histórica.

Mas a história não teria sentido se a questão, como da ideia, não fosse ponível assim que a história acontece. E ao acontecer, ilumina o passado como cenário sem distinção, enquanto meio humano, relativamente à possibilidade desse acontecimento. Então os Estados passam a serem vistos numa movência histórica, ao contrário de revelações divinas inalteráveis por si.

Assim me parece pertinente colocar as coisas quanto a Hegel, naquilo que seria a armação conceitual do seu pensamento político, não desfigurado. Porém pode-se objetar que ele não fica só nesse âmbito maior da generalidade. Se há sobredeterminação na particularidade, da história como ela é por um dever-ser que ele extrapola tal que se podem fazer ilações sobre estados de coisas que seriam efetivamente atuais mas não históricos; ou ilações racistas a partir do situamento de formas de Estados arcaicas relativamente ao progresso da emancipação; esses são itens obviamente criticáveis e o necessário é analisar como se constituem discursivamente.

Se constituem-se por limite epistêmico informativo de época ou por decisões tomadas em nível ético, em todo caso a questão é se há no discurso hegeliano explicitamente relação entre a generalidade e a particularidade, ou se o que se traduz aí é um sintoma, na sua forma costumeira de hiato. Mas o interessante é que os críticos atuais de Hegel nunca se interessam pela particularidade, não a criticam nem se lembram dela em sua crítica. Pelo contrário, só há crítica reportável em nível de generalidade. E isso não é a toa. O que chamamos aqui particularidade na sua vertente racista é universalmente praticado, como venho sublinhando ao longo deste estudo, para efeitos disposição cisória da modernidade "capitalista europeia-ocidental" relativamente a tudo o mais como anterioridade - se não já, para bem ou mal e em variados graus, na sua versão "européia-ocidentada".

Em nível de generalidade, Hegel não se incompatibilizaria com a antropologia pós-moderna, que obteve informação da democracia como a forma mais antiga do urbanismo, o sumeriano, assim como sua prática na organização de algumas sociedades tribais - porém não outras - informação totalmente contrária a todo o postulado antropológico que a modernidade conheceu. Em nível de particularidade, obviamente sim.

Porém o hegelianismo pós-moderno, aquele que tem sido ostensivo como revalorização de temáticas concernentes a Hegel na teoria recente, deve-se claramente ao que chamei nível de generalidade. A questão da relação dos níveis só poderia ser colocada desde um endereçamento mais consciente na crítica da sobredeterminação antropológica que acima tratei como a assim designada ciência do desenvolvimento, na verdade a ideologia do imperialismo. O que tenho designado "geoegologia", e que acima expliquei como autoposição do ocidente construída como oposição disponibilizadora do "primitivo" é evidentemente esse nível de consciência. E se pelo nosso viés crítico da geogologia, podemos colocar aqui a questão do desenvolvimento em Hegel, como nível particular, num contexto isento de oportunismo e de preconcepção oligárquica relativamente ao geral, o interesse pós-moderno parece-me se explicar por isso que Hegel é o único teórico da modernidade que tem um nível de generalidade compatível com o nível de particularidadepós-moderno - ironicamente excetuando-se assim a particularidde de Hegel mesmo, tal como a dos demais modernos. Porém já é hora de se preocupar com isso.

O próprio dilema de neoliberalismo e totalitarismo, como posto por Th. Weber, é falso, posto que o Estado constitucional de direitos civis, cujo referencial são os sujeitos, cidadãos de sua nacionalidade, como do seu Estado, já existe e é o vigorante. O que se designa dilema de neoliberalismo e totalitarismo deve então ser transposto para abranger duas formas de ilegalidade como dominação de abuso dos direitos humanos, não dois modos de se posicionar o Estado como a legalidade. Porém, essas duas formas de ilegalidade não tem o mesmo estatuto do ponto de vista da teoria política hegeliana, em seu nível geral.

A primeira, o neoliberalismo, é ilegalismo no sentido do crime comum. Hegel não previu certamente que alguém pudesse ser tão cínico a ponto de sugerir que a prática de crime comum como roubo, dominação sobre a sociedade na forma de abuso de preços, escravismo, etc., pudesse ser ignorada pelo Estado enquanto referencial da punição do crime contra os cidadãos. Ele realmente nunca pensou o "capitalismo". Entretanto, todas as formas de abuso cometidos pelo "capitalismo" estão arroladas como crime pela constituição. Assim a dominação neoliberal não é uma questão do Estado, mas da corrupção dele, e isso é explícito, já que o neoliberalismo não requer leis, bem inversamente, preconiza o fim do Estado como dever coibitivo e punitivo contra o abuso econômico, assim como contra qualquer abuso.

A segunda, o totalitarismo, inversamente, é o que Hegel tratou como proto-legalismo. É uma forma histórica do Estado que a modernidade tornou arcaica. Porém o terrorismo na atualidade, como tem expressão entre etnias e nações colonizadas, oprimidas pelo imperialismo, expressa situações em que a forma arcaica se atualiza, quando se trata de nações reduzidas ao comando do seu exército revolucionário contra a subjugação imperialista ou neocolonial. O Irã é um exemplo conspícuo. Já tendo alcançado a modernidade representativa, na altura dos anos cinquenta, o governo legal de Mossadegh foi derrubado por um golpe de Estado documentado por historiadores como Cl Julien, intervenção ilegal da Cia, a qual, para se apoderar do petróleo iraniano, instalou uma ditadura cujo governo era egresso do nazismo hitlerista. O golpe foi subvenciado a alto custo por Aramco, cartel de petrolíferas americanas, com vantagens cedidas a petrolíferas inglesa, francesa e holandesa. Como sabemos, a reação econômica nacional naquele país foi possibilitada apenas por uma adesão popular, naquele contexto resultando assim o totalitarismo religioso dos Aiatolás. Na América Latina, intervenção igual para fins de dominação econômica que impôs as recentes ditaduras militares de capitalistas, foi documentada por René Dreyfuss para o caso brasileiro.

Os totalitarismos de direita implementados no terceiro mundo diretamente pelo capitalismo central foram de barbárie monstruosa, desmentindo frontalmente a tese foucaultiana do abrandamento das penas como a priori da modernidade - enquanto não apenas as leis pró forma, também o sentimento de repulsa à punição brutal. Não surpreende que o neonazismo tenha emergido como tendência internacional, do cenário das ditaduras.

Eu creio que a globalização, uma vez que está se comprovando recolonização, além da barbárie sádica disseminada agora em nível de ideologia, vai acabar sofrendo o mesmo destino das nações colonizadoras no cenário das guerras de descolonização, porém muito agravado o cenário pelo fato dessas guerras já terem acontecido, e não podermos mais lidar com os imperialistas como apenas movidos por algum tipo de inocência histórica. Destino de morte que será muito justo, devido à desfaçatez do neoliberalismo econômico, como já expressei acima, e especialmente a nojenta intervenção dessa sabotagem da consciência assim como do elemento mínimo da legalidade, que é "personal computer".

A situação interposta pelo capitalismo na história é complicada demais para analisarmos aqui, mas algo que precisamos observar é que sendo como colocamos, a noção de moralidade do Estado em Hegel é na verdade o conceito de "legalidade". Um conceito haurido da história como daquilo que se realizou em termos da consciência dos direitos humanos. Aquilo que estava sendo expressamente requerido pelos teóricos políticos do liberalismo, assim como pela população oriunda do esclarecimento, na reurbanização pós-feudal. Ora, a questão aqui é por que a burguesia modernizante revolucionária não queria apenas trocar de rei, mas sim um regime de legalidade instituída que não tinha na tradição até aí qualquer exemplo concreto. A documentação teórica responde a essa pergunta. A heterogeneidade do aborígine americano, lembrando ainda que as Américas são empíricas, não a priori dedutíveis, implicou a constatação da realidade liberal na origem. A questão da teoria política era então como ela se transformou em história, como "modernidade". Hegel imprime um novo estilo na teoria política, por estar presenciando mesmo na América a ação histórica do abolicionismo e formação nacional.

Quanto a nossa ênfase na relação de Hegel com a legalidade enquanto axiomaticamente o direito subjetivo e não estamental grupal, de fato é essencial, já que não há ideia de nacionalidade, referencial da constituição enquanto do Estado, contemporânea. se não com base na transição refernciada ao direito dos sujeitos por igual, não havendo igualdade logicamente pensável senão dos sujeitos individualmente considerados. Só assim já não sendo possível ao príncipe ou a quem quer que seja declarar que "L'Etat c'est moi". Ou que a história nacional se reduza, como o referencial do que a nação é, à dos feitos de algumas famílias numa época recuada da formação territorial. Isto é, já não havendo ideia alternativa de nação legalmente constituída.

Ao contrário, o ideal designado liberal que Th. Weber defende como sendo o que Hegel preconiza é o que conforme aquele se designa "Estado estamental". Este seria o Estado ético essencial: "O Estado pressupõe uma sociedade organizada em estamentos". (p. 103)

Utiliza-se ele do termo Stände, salientando não se tratar de classe ou estado social, mas instância político-representativa do Estado (p. 109). Ora, o que pode ser político-representativo do Estado, além da população, caso se esteja falanto do que o Estado representa, ou os poderes que expressam a forma do governo, como hoje os poderes executivo, legislativo e judiciário?

Inversamente, Th. Weber considera assim o que designa instâncias mediadoras como o que Hegel prosaicamente considera grupos sociais em que participam cidadãos: "a família, as corporações e as regras vinculadas a cada uma". (p. 106) Desse modo não há obviamente diferença alguma da semântica estamental do antigo regime, exceto que a hierarquia do poder dos grupos não tem o mesmo título que nobreza, clero e plebeus, sendo porém constante, uma vez que famílias e sindicatos traduzem a escala desigual, e não são obviamente sujeitos.

Para Th. Weber, as instâncias mediadoras são a efetivação da representação política, pelas quais o Estado cumpre sua função universal de garantir o interesse particular, deixando-se limitar pelas instâncias o poder de atuação estatal. Porém, não há interesse particular estatal- constitucional reconhecido, que não mediado pelas referidas esferas ou instâncias. O que resulta numa contradição flagrante. Ora se diz que "a limitação das liberdades individuais, o que se dá pelo processo de mediação, é condição de possibilidade de sua realização" (p. 106); ora, pelo contrário, que assim "evidencia-se a impossibilidade da eliminação das liberdades individuais. Essas são a própria realização e concretização da universalidade representada pelo Estado". (p. 105)

A relação do indivíduo com o que é atribuído a Hegel ter especificado o "sistema de família e da sociedade civil" é posto por Th. Weber, como o contrário do Estado totalitário, porém não vemos como o seria, já que a imposição do assim suposto universal ético de Estado poderia passar a ser feita com base totalmente extrínseca à nacionalidade. Além de que, o sujeito não existe para esse "Estado estamental" suposto ético - inexistência que define todo Estado totalitário.

Porém não se jusifica por outro lado, como é que não se trata da justificativa do neoliberalismo econômico em termos de "Estado" do tempo e do espírito do mundo atual. Se aquele é a concretização das esferas corporativas em que o sujeito deveria solver-se na totalidade das instâncias civis, naquele referencial que Th. Weber explicitou como os Estados Unidos.

É evidente que a solvência do sujeito dos direitos em estamentos como esferas que talhariam a sociedade em funções integradas, não permitiria compreender nem mesmo as questões pertinentes aos interesses supra-individuais, do ponto de vista histórico. Por exemplo, não se poderia colocar a questão da violação cotidiana da igualdade de direitos entre homens e mulheres, pelo business de mídia ultramoderno, enquanto canal redutor da mulher a objeto abjeto da sexualidade do homem, posto que não há nenhuma lei que o prescreva. Em contrapartida, não se poderia pesquisar o que realmente pensam e como realmente agem as mulheres do assim designado "regime Talibã" - que nem mesmo, ao que se sabe pela mídia, tem representação civil de Estado além de facção religiosa, isto é, ao que se considera que geralmente se adere por vontade própria ou formação pessoal.

O corolário do texto de Th. Weber, suposto hegeliano liberal, é uma invectiva do futuro como possibilidade promissora da convivência dos "diferentes 'espíritos dos povos'", propugnando ao invés um golpe que realize " a determinação de princípios éticos universalíssimos" como "certamente a condição de possibilidade de sobrevivência no planeta..." . (p. 108)

Só não se apresenta qualquer meditação que reflita o equacionamento desse fato histórico óbvio, que é o conflito crescente ser oriundo de uma dominação imperialista pavorosa, que desde seus inícios na catequese jesuítica não fez nem jamais almejou fazer nada diferente de uma determinação assim. Inversamente, usa-se o conflito em si como o remédio dele próprio.

E o liberalismo conceitua-se erroneamente como um super poder planetarizado, como Estado único, sem relação alguma com o sistema das famílias e da sociedade civil que alguém possa reconhecer como o seu, além de um núcleo de nações que se arroga o monopólio do próprio tempo presente, logo, de todo sentido de passado e futuro, sendo um tal Estado enquanto ético designado em termos de "administração das diferenças". Não se compreende como podem permanecer sendo diferenças se estão sendo homogeneamente e extrinsecamente administradas. Não considero que este Estado estamental do bobbiano Thadeu Weber seja posição liberal. Nem é habitualmente designada liberal qualquer revogação dos direitos do cidadão considerado não por subsunção a qualquer grupo social.

O que ocorre é que as relações que envolvem pessoas são reguladas por leis, tendo cada lei por seu conteúdo aquela ação específica que envolve pessoas posicionadas intersubjetivamente assim que nela se engajam.

Ampliando o horizonte observável, compreende-se que a trama das ações possíveis numa sociedade configura uma intersubjetividade, como possibilidade de sentido já preconcebida por todos, se não agem de modo totalmente incoerente. Em Hegel a intersubjetividade nesse sentido sociológico é evidentemente a nacionalidade, o que está expresso pela letra da constituição que reflete o ajusta da heterogeneidade local, e que não pode pois ser subsumida por qualquer poder supra-constitucional. Assim podemos entender que Hegel tenha pensado a representação dessa heterogeneidade pelo legislativo pluralista eleito por voto dos cidadãos, que é o fundamento racional da representação estatal caso não haja corrupção, em termos dos representados como os vários estamentos, na acepção apenas dos vários grupos de interesse que compõe uma certa sociedade num certo momento histórico.

Ora, o que Hegel trata como a moralidade do Estado constitucional, deve ser primeiro visto como algo que ele mesmo posicionou como o que não existia antes, mas se realizava naquele momento, como a modernidade. Isso está expressamente destacado por ele em "A Razão na História", junto às transformações históricas expressas pela Revolução Francesa, mas quanto ao horizonte refletido por Hegel, a dialética do senhor e do escravo obviamente tematiza a independência das ex-colônias e nelas ocorrendo a abolição da escravatura.

O raciocínio que desenvolvo aqui é como segue. Entre Locke e Rousseau, a teoria política deixou de poder ser estruturada como ainda por Hobbes, na base da tradição. Uma antropologia se tornou a base científica, ainda que não nomeada, como informação do estado originário, o aborígine americano. O que se sedimentou como o conhecimento efetivo, científico, "teórico político", foi a cisão das condições de natureza e sociedade. Mas a cisão se observou na prática transposta, nos acontecimentos da independência na América. Antes que, como de Marx em diante, um novo tipo de cisão fosse estabilizada, como entre mito e consciência histórica, Hegel expressa o intervalo como a possibilidade que restou, antes da biologia darwinista da horda primitiva. A saber, que na América, assim como até então se havia observado o estado originário, agora se estava observando a evolução histórica, a formação do Estado mas também, conforme as circunstâncias da colonização, a formação sem intermediários da origem à modernidade abolicionista e constitucional. Na modernidade tendo havido a transformação na concepção da pessoa, que se tornou sujeito - o oposto da subsunção ao grupo.

Mas o que se torna visível desse modo, como a vida dos sujeitos, é a intersujetividade como a trama de suas relações, as quais se presentificam em ações como o objeto da regulação legal. É essa a razão pela qual a legalidade é uma moralidade, mas não porque de fato tenha se anulado a cisão do público e do privado. Pelo contrário, a liberdade é o ethos do privado, como do sujeito, e essa é a esfera "ética", diversa da política, que Hegel não negou ser independente, assim como essa independência ser o que o Estado político tem que garantir se ele é legal.

A intersubjetividade se tornou histórico-efetiva, em Hegel, uma vez que a heterogeneidade do social precisou vir a ser pensável na quebra da unidade da tradição pela hiância marítima que informou a irredutibilidade americana, e é o que me parece aquilo de que Hegel se ocupou. Assim aqui estou me opondo a um tipo de interpretação do que Hegel estabeleceu em termos de esferas do social, que poderia resultar numa visão da sociedade como preconizada pela teoria althusseriana dos Aparelhos Ideológicos de Estado.

Bem inversamente a essa unidade chapada, penso que Hegel tenciona estabelecer a independência de três níveis como a essência da legalidade, refletida na atualidade de um Estado constitucional. Esses níveis são o ethos subjetivo, privado; o meio em que ele se expressa como a intersubjetividade social, aí onde esferas como família e corporações vem a refletir o que é assim produzido na efetividade; e o Estado como nível em que o estatuto público do social vem a configurar a sua natureza política. A legalidade é a articulação da liberdade entre os níveis, mas tendo na livre escolha da privacidade o seu conceito, no exercício efetivo de suas escolhas na sociedade a sua efetividade, e o Estado sendo a sua razão, sua expressão formalizada.

Ao me opor à referenciada interpretação da teoria hegeliana da sociedade e da ação social, os althusserianos Aparelhos Ideológicos de Estado, devo ressaltar que ela não é de todo não imputada ao próprio Hegel, mas como o que se deveria criticar nele como ideólogo da burguesia capitalista. A base dessa crítica é portanto o que a meu ver carece inteiramente de consistência, posto que não existe burguesia capitalista, mas sim imperialismo, o que não é um conceito que possamos sedimentar a partir da noção elementar de classe, não sendo realidade estatal-social-nacional, mas geopolítica-econômica- internacional.

Mas, quanto a Hegel, se ele equacionou o caráter epistemologicamente revolucionário da intersubjetividade histórico-efetiva, vemos que não poderia ter deixado de observar que o conteúdo desse pensável já não poderia elidir a sua própria possibilidade, enquanto histórica. O problema desse vir a ser do pensável enquanto tal é o que Hegel tratou na Lógica, não propriamente ainda na Fenomenologia. Porque esta é o que efetivamente se tornou pensável. E aquela é o que este vir a ser problematizou irreversivelmente.

Não creio pois que haja aí um círculo ou uma partição de tarefas. Mas sim que algo foi problematizado requerendo uma resposta, e algo que é precisamente a lógica, na medida em que algo se apresentou como devendo necessariamente vir a ser. Assim tampouco creio que seja a consciência comum o que poderia se reconhecer ao final da Fenomenologia do Espírito, se não na transformação total que a subtrai da generalidade do "comum", instaurando-a na particularidade de ser consciência do problema posto pela sua historicidade mesma.

Como poderia a autoconsciência subjetiva realizada ser ao mesmo tempo a realização da consciência comum? E como poderia o conhecimento absoluto, enquanto a possibilidade de autonomias do inteligível inexpugnáveis como das ciências, ser o equivalente dessa comunidade realizada da consciência?